domingo, 3 de julho de 2011

O BAÚ DA GAIATICE




O IRREVERENTE ZUCA IDELFONSO

Arievaldo Viana

Na postagem de hoje resolvi resgatar um personagem do meu livro de estréia,  O Baú da gaitice, lançado em 1999 pela Editora Varal, do meu amigo Vescêncio Fernandes. Trata-se do
meu parente Zuca Idelfonso  ou 'Seu' Zuquinha das Campinas  homem branco de respeito,  como ele próprio se autodenominava, foi um personagem inteligente, espirituoso, desbocado e pra lá de autêntico. Não tinha papa na língua, nem mandava recado. Dizia o que bem queria em qualquer hora e lugar. É o tipo da figura que extrapola qualquer comentário, que excede qualquer anedotário e que não cabe nas páginas de livro algum, tamanha é quantidade de "causos" que lhe são atribuídos, alguns dos quais impublicáveis.
Falava  de uma maneira bastante singular, trocando o "s" pelo "x" - anos luz antes do surgimento da Xuxa  -  e a letra "v" pelo "g".  A propósito desse seu distúrbio de linguagem, é notório o caso do Presidente Dutra  (1945  a 1951), que também falava "imprialzim" ao Zuca, conforme constatou a historiadora cearense Isabel Lustosa em seu livro "Histórias de Presidentes  A República no Catête", obra fartamente ilustrada com desenhos de J. Carlos e outros chargistas da época. O capítulo dedicado ao Marechal Dutra intitula-se "Voxê qué xabê?". Por conta dessa particularidade, Dutra foi "massacrado" pelos chargistas seus contemporâneos.
O forte do Zuca era o seu poder mordaz de satirizar situações. Troçava com a ordem estabelecida, a moral e os bons costumes. Sertanejo astuto, feroz observador, não poupava nem a própria sombra.
Gostava de implicar com todo mundo, inclusive os parentes. Os Vianas eram seu alvo predileto: "Giana é igual a pelo de hortênsia, desgraxa uma bebida!". Também teria afirmado, em outra ocasião: "Giana é um bicho muito parexido com gente... pé de Giana é como picarete, do tanto que tem pra frente, tem pra trás!"
Fazia pouco caso da polícia e do clero. Quando foi buscar uma parteira para assistir o primeiro parto de sua mulher, Zuca fez o seguinte comentário:
- Padre, Parteira e Xoldado... ô três classe de gente xem futuro!!!

A XESTA DO ZUCA
Quem morre de achar de graça deste causo é o poeta Geraldo Amâncio, um dos maiores repentistas da atualidade, além de inspirado cordelista... Certa feita o Zuca resolveu fazer uma festa em sua casa. Já diz um velho adágio popular que festa é muito bom... na casa dos outros. Festa no sertão termina sempre em briga, em candeeiro apagado, em fole furado e outras desavenças do gênero. Prevendo tais contratempos e temeroso de que os brigões puxassem estacas de sua cerca, Zuca mandou cortar 50 cacetes de jucá e os empilhou no terreiro. Todo convidado que chegava ele dava o aviso:
- Olhe xeu xela da puta, se quigé brigá ali tem caxête de xobra! Num é prexijo arrancá as vara da minha cerca!
A festa  que por sinal não tinha alvará de licença  foi das mais bagunçadas. Briga por cima de briga, araca por cima de araca... um verdadeiro pandemônio.
No dia seguinte, como já era de se esperar, o Zuca foi intimado a comparecer perante o delegado de Quixeramobim, onde registrou-se o seguinte diálogo:
- Senhor José de Sousa Araújo...
- Xou eu!!!
- Soube que o senhor fez uma festa sem licença e  que a mesma resultou em muita briga...
- Menos a verdade! Em primeiro lugá eu num prexijo de lixença pra fazer festa na minha casa, porque lá quem manda xou eu. Em segundo lugá, xó houve uma briga... comexou a boca da noite e terminou de manhã!

HÁ VIDA APÓS A MORTE?

O velho Chico de Sousa  - o Fitico -, foi um dos homens mais religiosos de que se teve notícia em Quixeramobim. Ele e seu genro Mané Aderaldo eram praticamente uns beatos, de tanto que rezavam, além do respeito incomensurável por tudo que se relacionava com as coisas da Igreja. Tal sentimento jamais foi partilhado pelo Zuca, sujeito irreverente e livre pensador, anarquista por pura intuição, uma vez que jamais leu livro algum que o doutrinasse neste sentido.
O certo é que Zuca costumava zombar deste apego desmedido às coisas do outro mundo, a ponto de imaginar um Inferno repleto de maravilhas terrenas, sanfoneiros, dançadeiras semi-nuas e bebida da melhor qualidade, enquanto o Céu seria um lugar monótono, sem qualquer atrativo, onde as almas bocejavam de tédio sobre brancas nuvens de algodão azul.
Acerca dessa questão, um sobrinho do Zuca, o Albani, afirma que o viu comentar certa vez:
" - Já penxou quando nós tiver tudim no 'inxerno', danxando com as nêga e bebendo xerveja... ô que beleza! Já o pobre do Mané Aderaldo, coitado,  tão triste, lá em xima, trepado naquelas nuvens xem graça, doidim prá cair na gandaia e num pode...!"

De certo modo, seu jeito irreverente lembra as peripécias de Cancão de Fogo, o célebre "amarelinho" criado por Leandro Gomes de  Barros  - de quem voltaremos a falar  no terceiro capítulo deste livro - que  também zombava da morte:


"Quando ele viu que morria
Chamou a mulher pra junto
E disse: - Minha mulher
Não precisa chorar muito
Não há tempo mais perdido
Do que chorar por defunto.

A pessoa que tomar
Remédio pra não morrer
É como quem salga carne
Depois dela apodrecer,
É rezar para São Bento
Depois da cobra morder.

Chegou um frade e lhe disse:
- Venho ajudá-lo a morrer...
Respondeu Cancão de Fogo:
- Tenho que lhe agradecer,
Deite-se aí para um canto
Cuide logo em se torcer.

- Torcer como? Disse o frade,
Disse o Cancão: - Meu amigo,
O senhor não vem morrer
Para ir junto comigo?
O frade responde: - Vôtes!
Um burro é quem vai contigo!

Disse o Cancão de Fogo:
- Se eu não estivesse prostrado
Você tinha que sair
Cortês e civilizado
E só entraria em casa
Depois que fosse chamado.

- Meu irmão, lhe disse o frade
Eu vim aqui exortá-lo,
O inferno está aberto
O diabo a esperá-lo
As chamas do purgatório
Estão prontas pra queimá-lo.

- Se entrei na tua casa
Foi para te confessar,
Pois levas grandes pecados
Para o leito tumular
Vim salvar-te do diabo,
Pra ele não te levar.

Disse-lhe o Cancão de Fogo:
- Frade, quero que me dê
explicação do Inferno,
Lhe peço como mercê,
No Inferno inda haverá,
Um diabo como você?

O frade saiu dali
Se benzendo amedrontado
Dizendo: - Aquilo é o Cão
Em um ente transformado
Me valha rosário bento
E o madeiro sagrado."

(In O BAÚ DA GAITICE, Editora Varal, 1999)

Lançamento do Baú da gaiatice em Canindé-CE
Arievaldo, Juracy Mendonça, Pedro Paulo Paulino, Vescêncio Fernandes, Diassis e J. Batista

Toinho, Mario Lira, Natan Marreiro, Arievaldo, Itamar e Capitão Ari
O lançamento aconteceu em junho de 1999,
no restaurante da nossa amiga Socorro Bastos.
Anteriormente, o livro já havia sido lançado com estrondoso
sucesso no Pirata's Bar, da Praia de Iracema.

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