domingo, 4 de março de 2018

Centenário de morte de Leandro



ENTREVISTA

A jornalista GISA CARVALHO entrevista o escritor ARIEVALDO VIANA sobre os 100 anos de morte do poeta LEANDRO GOMES DE BARROS (Pombal-PB, 19/11/1865 – Recife-PE, 04/03/1918) para a revista Suplemento Cultural, vinculado ao Diário Oficial do governo de Pernambuco

1 - Como conheceu a obra de Leandro Gomes de Barros?
ARIEVALDO – Conheci a obra de Leandro na mais tenra idade, antes mesmo de ser alfabetizado. Minha avó Alzira tinha o hábito de ler folhetos em voz alta e, em torno dela, formava-se uma roda de adultos e crianças, sob a luz da lamparina. Foi assim que travei contato com Cancão de Fogo, Soldado Jogador, Juvenal e o Dragão, Donzela Teodora, Princesa da Pedra Fina e tantos outros textos maravilhosos da autoria desse grande poeta. Leandro Gomes de Barros é um dos mais importantes e ao mesmo tempo um dos menos conhecidos poetas do Brasil. A partir de influências do trovadorismo ibérico e da poesia oral brasileira, ele destacou-se por formatar e popularizar um gênero literário que hoje se denomina Cordel. Todos os poetas ditos populares que vieram depois dele beberam na sua fonte e aproveitaram-se de seus ensinamentos.

2 - De que forma ele inspira sua produção?
ARIEVALDO – Fui alfabetizado a partir dos cinco anos e aos sete eu já lia folhetos desembaraçadamente. Aos dez comecei a dar os meus primeiros passos como poeta popular, e meus principais inspiradores foram Leandro Gomes de Barros e José Pacheco, o autor da famosa “Chegada de Lampião no Inferno”. De Leandro eu absorvi a diversidade dos temas e algumas pitadas de erudição, que o velho mestre bebia na “Literatura Oficial”. De Pacheco, a métrica e o gracejo. Nesses dois quesitos, Pacheco era imbatível. Ninguém metrificava tão bem quanto ele e poucos conseguiam ser engraçados como ele foi. Pode se dizer o mesmo de Leandro com relação ao humor. Ele próprio se considerava humorista. Então, quando comecei a levar o cordel a sério e fazer os meus primeiros folhetos visando a publicação, o principal modelo que vislumbrei para a minha produção foi a obra desses dois mestres, sem esquecer José Camelo de Melo, Delarme Monteiro e o nosso Patativa do Assaré, que já foi uma influência de outra monta, sobretudo no que diz respeito aos temas sociais.

3 - Com que frequência você lê obras de Leandro?
ARIEVALDO – Eu tenho a obra de Leandro na cabeça. O que aprendi na infância continua aqui, indelével. Costumo recitar páginas e páginas do Cancão de Fogo, do Padre Jogador, do Testamento do Cachorro, tudo de memória. Já os romances mais longos eu gosto de reler com calma, nos fins de semana. A obra de Leandro, orçada em mais de 600 títulos, não sobreviveu à ação inclemente do tempo. Restam hoje uns 50 títulos que ainda estão em circulação e são reeditados pela Luzeiro, de São Paulo, pela Tupinanquim Editora, pela Editora Queima-Bucha, de Mossoró e por editoras de universidades, mais das vezes em coletâneas ou Antologias.
Desenho de JÔ OLIVEIRA

4 - É fácil para você ter acesso a essas obras? Onde encontra?
ARIEVALDO – Eu tenho uma coleção particular com mais de 10 mil folhetos e cerca de 6 mil títulos. Tenho, praticamente, todos os clássicos do gênero, num período que vai da primeira década do século XX até os nossos dias. E também grande parte da produção dos novos autores, que se destacaram nos últimos 30 anos. Da geração imediatamente anterior à nossa, tive (e tenho) contato com quase todos: José Costa Leite, Gonçalo Ferreira, Lucas Evangelista, Chico dos Romances, Raimundo Santa Helena; e os já falecidos Mestre Azulão, Antônio Américo de Medeiros, Manoel Monteiro, Antônio Alves da Silva, Minelvino Francisco, Vicente Vitorino de Melo (com esses mantive farta correspondência). Na verdade, eu adquiri, juntamente com meu irmão Klévisson Viana, o acervo que pertenceu ao saudoso pesquisador Ribamar Lopes, uma das maiores autoridades sobre cordel. Então, a obra de Leandro Gomes de Barros veio nesse bojo. O que eu não tenho no meu acervo pessoal, pesquiso no site da Casa de Rui Barbosa ou na Biblioteca Amadeu Amaral, da FUNARTE, que digitalizaram mais de 200 obras de Leandro e estão disponíveis para consulta.
Para quem quer conhecer a obra do mestre, tenho duas dicas: 1) adquirir o meu livro Leandro Gomes de Barros – Vida e Obra (biografia) e os folhetos que foram relançados nos últimos 10 anos por editoras do Nordeste e de São Paulo. 2) Visitar o site Literatura de Cordel, da Casa de Rui Barbosa e a coleção de folhetos da FUNDAJ (Fundação Joaquim Nabuco), que disponibilizou vários títulos no formato pdf, já de domínio público, fáceis de acessar e baixar.

5 - Quais temáticas mais interessam?
ARIEVALDO – Eu navego em todas as direções. O gracejo e o romance mais elaborado estão entre os meus prediletos, mas gosto também de pelejas, motes, debates, folhetos de bravura, adaptações de clássicos da literatura universal e até da chamada poesia matuta. Nesse campo, minhas influências são Alberto Porfírio e Patativa. Foram eles que conseguiram um linguajar mais aproximado daquele que os matutos falavam antigamente. Eu uso o termo “antigamente” porque gostava muito de escutar as conversas de meus avós com outros parentes já idosos e ia recolhendo uma série de termos que estão totalmente em desuso e que vejo com frequência nos poemas de Patativa e Alberto Porfírio.

6 - A partir de suas pesquisas, quem é Leandro Gomes de Barros para você?
ARIEVALDO – Um gênio. Indiscutivelmente, o maior expoente da Literatura de Cordel em todos os tempos. Leandro Gomes de Barros representa para o cordel o que José de Alencar representa para a literatura considerada “erudita”. Além de ter sido um pioneiro, foi o primeiro a pegar o romanceiro ibérico e diluir em nosso meio com uma linguagem abrasileirada. No caso de Alencar, os romances indianistas, no caso de Leandro o uso de uma linguagem e de temas cem por cento nordestinos. O pioneirismo de Leandro Gomes de Barros e os mecanismos que ele desenvolveu para que houvesse a transição da poesia popular oral para o folheto impresso é uma coisa de gênio. A arte do trovadorismo veio da Península Ibérica e floresceu tanto na América Espanhola quanto na América Portuguesa. Houve um tipo de literatura popular em verso no México, Chile, Nicarágua e Argentina, muito parecido com o folheto nordestino... Até a gravura popular usada para ilustrar os corridos é muito parecida com a nossa, sem falar que muitos dos temas aproveitados pelos autores da Literatura de Cordel nordestina também floresceram nesses países. De certo modo, a Literatura de Cordel brasileira surgiu de maneira tardia, porque antes da vinda da Corte Portuguesa em 1808, era proibida a existência de prelos aqui no Brasil. Então, a poesia popular oral, que já existia desde os tempos de Agostinho Nunes da Costa, Hugolino do Sabugi, Inácio da Catingueira e Romano da Mãe D’água ganhou um novo alento quando Leandro mudou-se da Vila do Teixeira, na Paraíba, para Vitória de Santo Antão e passou a editar os primeiros folhetos nas tipografias de Recife. Leandro não se limitou a reaproveitar os temas correntes, como a gesta do boi (Boi Misterioso), o cangaço (já existiam cópias manuscritas dos ABCs de Jesuíno Brilhante e Lucas da Feira) ou temas europeus como o Ciclo de Carlos Magno e os Doze Pares de França, Imperatriz Porcina e Roberto do Diabo. Ele foi mais longe. Criou um tipo de poesia cem por cento brasileiro, destacou-se sobretudo pela sua sátira mordaz e instigante. O estilo de Leandro é inconfundível. Ele teve fôlego para transitar em todos os gêneros e modalidades correntes: Peleja, Romance, Gracejo, Crítica Social e o fez com maestria. Poucos conseguiram igualar-se. No geral, ninguém o superou até hoje.


7 - Qual a importância de Leandro para a literatura?
ARIEVALDO - A obra de Leandro, aparentemente simples (desprovida de lavores artísticos, como disse Drummond) e impressa em folhetos de baixo custo, abordava temas que eram realmente do agrado de todas as camadas sociais. Até mesmo intelectuais de renome, que supostamente torciam o nariz para esse tipo de literatura, acabavam comprando também, certamente levados pela curiosidade. É o caso de Rui Barbosa, que foi flagrado lendo avidamente alguns desses folhetos e ficou meio sem graça, dizendo que “naquilo” não havia literatura. Pessoas que não frequentavam escolas, que não tinham nenhuma intimidade com as letras, acabaram se alfabetizando através dos folhetos de Leandro ou se tornaram leitores ouvintes, porque esses textos eram sempre lidos em voz alta, em rodas de 5, 10, até 20 pessoas. Eu mesmo alcancei esse hábito na infância, pois nasci no Sertão Central do Ceará, numa localidade onde não havia energia elétrica e as pessoas formavam rodas de leitura à luz de lampiões.
8 - O que encontramos de Leandro nos dias atuais?
ARIEVALDO – Quando você encontrar um folheto bem feito, um cordel bem elaborado, com métrica, rima e oração, usando uma linguagem popular e agradável, polvilhada de chistes e de filosofia, de riso e de pranto, pode ter certeza que ali está a influência de Leandro. O poeta paraibano, tal e qual Charles Chaplin, sabia dosar muito bem o riso e o drama em seus enredos. Sabia ser lírico e sabia ser engraçado também. Muito de sua produção se perdeu na poeira do tempo, porque Leandro era também um grande glosador, daqueles que fazem versos de improviso ao pé do balcão, sem utilizar qualquer instrumento musical. Leandro reconhece num poema auto-biográfico que tinha a voz fina e pouco sonora, por isso não se aventurou pelo mundo como cantador de viola. Isso foi de grande proveito para poesia impressa, para a chamada Literatura de Cordel, porque ele deu vazão ao seu estro de forma escrita e isso ficou registrado em centenas de folhetos, nas milhares de edições que foram e ainda são feitas de seus clássicos.
9 - De onde surgiu a ideia de escrever a biografia/realizar uma exposição/transformar a casa em museu?
ARIEVALDO – Bem, a ideia da biografia surgiu justamente porque eu queria saber alguma coisa sobre Leandro e todos os pesquisadores que escreveram antes de mim usavam sempre as mesmas fontes e no frigir dos ovos o texto não ultrapassava três laudas. Eram datas desencontradas, nenhuma (ou quase nenhuma) informação sobre os seus antepassados, em suma, uma grande lacuna que precisava ser preenchida. Com muita paciência fui recolhendo documentos, depoimentos, artigos publicados em jornais e revistas, procurando folhetos raros de modo a reconstituir um pouco da vida e obra desse grande poeta. Esses documentos foram localizados em cartórios e livros de tombo das paróquias da Paraíba e Pernambuco, com a ajuda do escritor Pedro Nunes Filho e de Cristina da Nóbrega, ambos parentes de Leandro. Pedro era bisneto de Josefa Xavier de Farias, irmã da mãe de Leandro, dona Adelaide Xavier de Farias. E Cristina, por sua vez, bisneta de Daniel Gomes de Barros, irmão de Leandro. Depois que lancei o meu livro, em 2015, usando recursos do próprio bolso, porque não achei editor que apostasse no projeto, formou-se uma rede de pessoas interessadas em aprofundar o assunto. Eu, por meu lado, tenho contado com a ajuda imprescindível de alguns colaboradores, como o pesquisador José Paulo Ribeiro, de Guarabira-PB, para destrinchar algumas passagens obscuras da vida de Leandro, fuçando documentos cartoriais e livros da Igreja. Quando sair a segunda edição desta obra certamente virá muito mais alentada, bastante ampliada com novas informações e correção de algumas informações equivocadas.
10 - O que encontrou na pesquisa, que foi uma surpresa, ou que não era conhecido?
ARIEVALDO – Posso lhe assegurar, sem demagogia, que mais de 50% do que eu pesquisei não se encontrava em nenhuma obra anterior à minha. Iniciei essa pesquisa por volta de 2005 e, ingenuamente, andei publicando muita coisa em blogs, o que possibilitou a rapinagem de alguns aproveitadores, que lançaram mão de algumas descobertas e não tiveram o pejo de se arvorar “pais da criança”. Eu, por meu lado, não tenho vaidade e tudo que eu mais queria era resgatar o nome e a obra de Leandro, então não me ocupei em reivindicar a paternidade de nada. Tenho, isto sim, a sensação de haver dado uma grande contribuição, fazendo com que o nome de Leandro fosse relembrado e pesquisado pelas novas gerações. Uma revista publicada pela PUC, onde divulguei um artigo de mais de dez páginas, um caderno especial do jornal Diário de Pernambuco, uma matéria na Revista de História da Biblioteca Nacional e outras publicações anteriores ao meu livro atestam o mérito de meus esforços e bastam, por suas datas de publicação, e pelas referências ao meu trabalho, como documentos irrefutáveis. Diante desse reconhecimento, creio que a minha pesquisa valeu a pena. Mesmo não tendo pleno domínio dos modernos métodos da historiografia, mesmo não sendo um profissional da área, consegui o meu objetivo, como admirador de Leandro e diletante em matéria de história.
11 - Que fatos da vida de Leandro gostaria de destacar?
ARIEVALDO – Há episódios curiosos da sua juventude que só foram preservados pela tradição oral familiar e que eu soube através de depoimentos de Paulo Nunes Batista (filho do compadre e editor Chagas Batista) e de sua sobrinha-bisneta Cristina Nóbrega. Tem o caso da tia “cangaceira”, a Chica Luzia, que é citada por sua filha Julieta, numa entrevista. Aliás, sobre Julieta há um fato bem interessante. Ruth Brito Lemos Terra, que a entrevistou, não sabia, por exemplo, que seu verdadeiro nome era Gilvanetta. É assim que ela se encontra registrada no cartório de Jaboatão e também na sua certidão de batismo. Parece que ela não gostava de ser chamada de Gilvanetta (ou Giovanetta) e preferia ser chamada Julieta. No meu livro tem até foto dessa filha de Leandro.
Outro dado interessante é uma análise que eu fiz do artigo de Carlos Drummond de Andrade, que considera Leandro o verdadeiro Príncipe dos Poetas Brasileiros, título que na verdade foi dado à Olavo Bilac. Em suma, o livro está recheado de histórias desse tipo. E a primeira edição já está quase esgotada. Espero que surja algum editor interessado em fazer a segunda. Ou não, como diria Caetano Veloso. Muito do que eu queria dizer já foi dito.
12 - Como avalia a importância de Leandro para a poesia de cordel contemporânea?
ARIEVALDO – Acho que essa pergunta já foi satisfatoriamente respondida nas minhas intervenções anteriores.
13 - Poderia me falar um pouco sobre a poesia de Leandro? Quais elementos podemos perceber com mais destaque? Quais as temáticas? Quais as principais influências dele? Por que considera que essa poesia tenha permanecido?
ARIEVALDO – Leandro era um autodidata. Um cara que lia bastante, que se informava, que frequentava a redação de jornais, que acompanhava as publicações da Livraria Quaresma, do Rio de Janeiro, que sabia o nome de todos os periódicos de Recife, que andava para cima e para baixo nos trens da Great Western. O folheto “Juvenal e o Dragão”, por exemplo, é uma adaptação do conto “Os três cães”, do livro Contos da Carochinha, de Figueiredo Pimentel. “A batalha de Oliveiros com Ferrabrás” baseia-se numa edição portuguesa da obra “Carlos Magno e os Doze Pares de França”. Pedro Cem era um texto popular em Portugal, assim como a Donzela Teodora e outros, que Câmara Cascudo considerava “livros do povo”. Leandro sabia o que queria. Ela sabia que tipo de leitura agradava ao povo, então seus temas prediletos eram os romances de amor, a gesta do boi mandingueiro, as pelejas entre grandes cantadores de seu tempo, e, sobretudo, a sátira política e a crítica social. Há quem diga que o folheto “Meia noite no Cabaré” foi inspirado em Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo. O que sei, de certo, é que Mário de Andrade bebeu na fonte do Cancão de Fogo da Paraíba do Norte para escrever o seu Macunaíma.
Gisa Carvalho
Jornalista (JP 2603/CE)
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social (UFMG)
Mestre em Estudos da Mídia (UFRN)

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